Entrevista a Professora Mª Natividade Teles Quelha

Posted: quarta-feira, 28 de abril de 2010 by Diana Costa in
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Entrevistámos a professora Natividade Teles Quelha, docente no Estabelecimento Prisional de Coimbra.

Foi a sua primeira experiência como docente nesta área?

Não, tive outras experiências. Trabalhei 11 anos com delinquentes menores; entre 3 a 4 anos trabalhei com ciganos e miúdos de rua, e agora estou há 4 anos na Penitenciária.

Candidatou-se ou foi colocada para leccionar na Penitenciária? Como reagiu?
Nem uma coisa nem outra. Fui convidada e destacada para exercer estas funções. Reagi muito bem, pois era aquilo que gostava de fazer.

Recorda-se do dia em que iniciou a sua actividade nesta área?
Perfeitamente. Na primeira experiência que tive com os delinquentes “ri à gargalhada”. Em 1987, ainda era muito novinha e estava com turmas do 5º e 6º ano, isto é, de delinquentes menores, e deparei-me com uma turma com alunos muito altos e fortes. Na primeira aula perguntei-lhes os motivos de estarem ali. As respostas foram as seguintes: “Ajudei uma velhinha a atravessar a passadeira” e “dei milho aos pombos”, entre outras. Perante estas respostas fiquei admirada e só depois compreendi o que me estavam a querer dizer, que afinal tinham roubado. Deste modo, confesso ter dado 2 erros: por um lado, não devia ter perguntado porque estavam ali, e por outro lado não estava familiarizada com o vocabulário deles. Mas foi por isso mesmo que gostei e me ri bastante.

Sentiu ou continua a sentir medo de possíveis agressões vindas dos reclusos?
Não. O professor tem de ter atenção aos pequenos sinais, ou seja, tendo o líder do grupo do seu lado é muito bom e não há nada a temer.

Como é a sua relação com os seus alunos?
É uma relação de amizade mas ao mesmo tempo de autoritarismo. Apesar de se sentirem à vontade para falarem comigo há a distância entre professor/aluno.

Sente-se realizada profissionalmente?
Aquilo que fazia com gosto há uns anos atrás, já não faço, agora com tanto gosto. Há dias em que me sinto muito revoltada, outros, apreensiva, depende. Há um descontentamento geral a nível de professores.

Dá aulas na presença de guardas?
Não, nem nunca senti necessidade de ter guardas. Sabendo medir as distâncias não há qualquer problema.

Como é o modelo de ensino nos estabelecimentos prisionais? É muito diferente do modelo de ensino normal? Que matérias leccionam?
O modelo de ensino é distinto do normal. Existem os cursos EFA (Ensino e Formação de Adultos), alfabetização e cursos profissionais. Eu lecciono o curso de alfabetização composto pelas disciplinas de Português, Matemática e Mundo Actual (ensino a preencher cheques, cartas de correio, preparo-os para a vida em sociedade).

Apresentam as mesmas capacidades que os alunos do ensino comum?
Não, é muito raro. Tal acontece devido a vários motivos: o consumo de álcool e de drogas (que afectam alguns dos alunos), devido às ausências justificadas pela presença em tribunais (muitas das vezes fora de Coimbra), idas à Polícia, ao Médico, e também devido à desmotivação por desequilíbrios emocionais. Deste modo, a fraca progressão dos alunos no processo de aprendizagem, leva a uma necessidade constante na repetição de matérias no ensino individualizado e reforços constantes dessas aprendizagens.

Como são os seus alunos? De que faixa etária são?
Os alunos são muito heterogéneos, quer a nível etário (dos 27 aos 64 anos), quer quanto à sua proveniência, quer ainda no que diz respeito às suas vivências. Podem ser emigrantes, ciganos, população sem residência permanente e de profissões itinerantes, e ainda homens de nacionalidade estrangeira. Geralmente são fruto de exclusão social e profissional sendo muitos deles pouco qualificados. Revelam crises de identidade pessoal, ou seja, têm pouca confiança, uma baixa auto-estima e poucas relações inter-pessoais. Deste modo, são alunos que se sentem isolados, desinteressados, com perda de autonomia. Convém ainda referir que os formandos têm necessidade de adquirir competências básicas para a sua reintegração social, como escrever e ler. Esta situação é vivida não por vontade própria mas por decisão dos tribunais e pela sociedade que assim o decretaram, em virtude dos seus comportamentos desviantes.

UMA EXPERIÊNCIA POSITIVA…

Tinha um aluno que na minha opinião não tinha aspecto de delinquente, o pai tinha bastante poder económico mas ele acabou por enveredar para a droga. Um certo dia, descobriu onde era a minha casa tendo aparecido à minha porta a ressacar. Assim que me apercebi da situação dei-lhe comida, banho e levei-o à REMAR, instituição que o levou para Espanha. Ao fim de dois anos apareceu de novo em minha casa, não ressacado mas muito eufórico e a pedir-me dinheiro para voltar para Espanha, pois dizia ter vindo passar férias. Recusei de imediato porque vi o estado em que estava, mas ofereci-lhe comida e fiz-lhe uma trouxa para levar para a viagem. Disse-lhe ainda que se ele queria ir para Espanha pedisse boleia mas que dinheiro não lhe dava e que nunca mais aparecesse em minha casa nem me voltasse a contactar porque já o tinha ajudado muito e ele não soube aproveitar as oportunidades. Durante muitos anos deixei de saber dele mas um dia recebi uma chamada onde reconheci a sua voz. E era realmente “o Chicha” que me estava a ligar para me dar novidades: havia-se tornado num dos dirigentes do armazém da REMAR, era casado, já tinha dois filhos e apesar dele e da mulher serem seropositivos os filhos não o eram. Enquanto falava com ele ouvi alguém a tratar o “Chicha” por Senhor Álvaro. Fiquei bastante contente com a situação, tornámo-nos bons amigos e ainda hoje mantemos contacto através de e-mail onde me vai enviando fotografias dos “meus netos”.

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